sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

Alterações à Constituição. Limites do Défice Orçamental.

As Constituições existem para delinear os valores mantidos normalmente por todos os indivíduos. A longevidade e a força de uma constituição são determinadas pela aplicabilidade destes valores a todos os indivíduos na sociedade. A Constituição prevê um quadro normativo em que os indivíduos podem julgar o estado actual da sociedade em função da projecção dos seus ideais. Através desta reflexão, os indivíduos podem defender a reforma constitucional no intuito de se dar mais um passo na direcção da realização dos ideais apresentadas e reflectidos no texto constitucional.
A Constituição é essencialmente um documento estruturante, que define o sistema de governo, os poderes dos órgãos de governo, e os valores que transcendem a autoridade desses mesmos órgãos. Definindo os limites do governo, a Constituição visa proteger a liberdade individual e a consagração da justiça para todos os indivíduos. As mudanças e alterações introduzidas poderão reflectir a evolução das condições sociais e um maior reconhecimento dos direitos individuais. Enquanto os cidadãos acreditarem que os valores fundamentais da Constituição podem ser resgatados a partir de interpretações correctas e adaptadas aos desafios que enfrenta a sociedade, a Constituição continua a ser legítima.
A principal finalidade da Constituição é delinear escolhas de valor fundamentais no seio da sociedade. A Constituição faz com que esses valores se tornem transcendentes a qualquer poder imposto por uma qualquer maioria governamental. Exemplos desses valores fundamentais incluem a separação dos poderes, a liberdade de expressão, o direito de justiça, entre outros. O desafio na interpretação da Constituição reside na ambiguidade subjacente ao esforço para aplicar estes valores a situações actuais, como o crescimento do poder executivo e a subjugação aos mecanismos económicos. Gerações sucessivas aceitaram modificações e alterações às interpretações dos fundadores desses valores com relação a suas próprias circunstâncias históricas. A Constituição não foi criada para preservar um sistema já existente de governança, mas para se aperfeiçoar no reconhecimento de valores que o sistema anterior não conseguiu reconhecer.
Os valores estabelecidos pela Constituição fornecem um ponto de referência para avaliar actuais questões constitucionais que se colocam tal como a questão de incluir valores explícitos dos défices orçamentais. E é por tudo isto e pela sua normatividade que sou contra a inclusão de qualquer referência numerária delimitando o défice orçamental na constituição. Não impedindo no entanto de considerar pertinente a inclusão e a determinação de princípios de equilíbrio orçamental que evitem situações de endividamento a que chegamos.
Não tenho dúvidas quanto á forma, mas sim quanto ao conteúdo.

Nuno Serra Pereira
Lisboa, 16 de Dezembro de 2011.

Os Peões nos Mercados Globais.

Quando Keynes analisa o cenário económico após 1929, identifica que a crise decorre a insuficiência de procura efectiva. E a contracção da procura efectiva dá-se em função da queda no nível dos investimentos. O nível dos investimentos declina porque a expectativa sobre a taxa de lucro, sobre o retorno dos investimentos também declinam. O empresário olha para as bolsas e vê as acções a desvalorizar-se, verifica os stocks e esses vão se acumulando, os preços estão em declínio, as dívidas mantém o seu valor de face e, portanto num cenário de deflação estão a ter um crescimento real além dos juros que terão que ser pagos. O comportamento racional do empresário é retrair os investimentos. A questão é que a retracção dos investimentos, que é o comportamento “correcto” e racional do ponto de vista do empresário individual, do ponto de vista agregado produz uma nova retracção na procura agregada, gera desemprego, aumenta os stocks acumulados, reforça a tendência deflacionista, ou seja, realimenta a crise.
Por isso, como saída para a crise, Keynes recomendou que o Estado utilizasse a política monetária e fiscal para elevar a procura efectiva. O crescimento da procura efectiva a despeito do desânimo generalizado geraria uma reversão de expectativas. O empresário, que havia desistido de investir ao ver os stocks a acumularem e os preços em queda, veria a procura a elevar-se e os stocks naturalmente a desencalhar, veria até mesmo os preços a estabilizarem-se, e com isso as suas expectativas revertidas. Consequentemente, o empresário retomaria seus investimentos, o que junto com a continuidade da política económica governamental resultaria numa recuperação geral da economia.
Em tese foi isso que aconteceu tanto nos EUA como na Europa na década de 1930, a política económica veio em socorro do mercado e permitiu a saída da grande depressão. Diante da crise da actual crise mundial, foi retomado o debate sobre a eficácia e a importância do New Deal na recuperação económica dos EUA. Vivemos numa época pródiga em revisionismos históricos. Mas se entre a teoria e a eficácia prática sempre há que se fazer as mediações necessárias, as relações entre as variáveis nem sempre são directas como aparecem no modelo, é inegável que a importância da leitura keynesiana da crise e das propostas de política económica para a história económica são subsequentes. Keynes introduz a crise no interior da teoria económica ortodoxa. Nesta inovação teórica keynesiana, as expectativas desempenham um papel central. As decisões são tomadas em função das expectativas, porque a economia é o reino da incerteza.
Para Keynes, a descentralização existente no mercado não permite que o indivíduo, o empresário, o consumir, a empresa, ou mesmo o governo, seja capaz de ter conhecer exactamente o resultado das suas acções. As decisões são tomadas de forma independente no mercado, e a interacção no mercado das diferentes decisões individuais geram resultados inesperados e mesmo indesejados. E não há como esperar para acumular informações suficientes para se tomar decisões numa economia de mercado, porque nunca haverá garantias que o investimento terá o retorno esperado. Portanto, os agentes económicos decidem em função das expectativas. A política económica expansionista no momento da recessão visa exactamente modificar as expectativas que estão a deixar de estimular os investimentos. Em princípio a política económica seria sempre eficaz na reversão de expectativas.
Milton Friedman realizou um dos principais ataques à teoria keynesiana. O autor desejava demonstrar que no longo prazo a política monetária expansionista proposta por Keynes seria ineficaz, não haveria um “trade-off” entre inflação e desemprego, ou seja, ao contrário do que postulado pela teoria económica keynesiana não haveria escolha entre inflação e desemprego. Os aumentos de inflação para reduzir o desemprego no curto prazo significariam no longo prazo tanto uma alta inflação quanto a elevação dos níveis de desemprego. A explicação de Friedman está baseada no comportamento das expectativas. Os agentes económicos teriam expectativas adaptativas. Então no curto prazo, os agentes seriam enganados pela política monetária, ou seja, ao aumentar a oferta de moeda, os valores nominais de preços e salários serão modificados gerando uma ilusão de aumento na renda. Mas no longo prazo seriam capazes de identificar que a política monetária modificou apenas a renda nominal e não a renda real. O resultado é que o nível de emprego cairia, enquanto a inflação perduraria. Ou seja, como os agentes económicos se comportam baseado em informações passadas, a política económica consegue temporariamente afectar as suas expectativas. Na medida em que tem novas informações as suas expectativas vão sendo redefinidas a partir delas e com isso a política monetária vai-se tornando ineficaz.
Os novos clássicos, comandados por Robert Lucas, introduziram na sequência, o conceito de expectativas racionais. Os agentes económicos possuem expectativas racionais e tomam decisões baseados no conjunto de informações disponíveis no presente. Supondo que a informação esteja distribuída de forma homogénea entre todos os agentes económicas isso garantiria não só apenas a ineficácia da política económica como também o equilíbrio do mercado. Ou seja, de posse das informações os agentes económicos não tomariam decisões erradas nem seriam enganados pelo governo através da política monetária. Aumentando a oferta de moeda o governo não produziria crescimento económico ou redução do desemprego, mas apenas uma elevação dos níveis da inflação.
Para cada corrente económica que surge na economia aparece “outra igual e oposta”. Para o caso dos novos clássicos surgem os novos keynesianos que também adoptam o conceito de expectativas racionais, mas que enfatizam a existência de custos ou distorções no mercado que impedem, que apesar dos agentes, terem expectativas racionais, o resultado seja sempre o equilíbrio do mercado. Um destes factores que impediriam a existência de ”market clearing“ é a existência de informação assimétrica no mercado. Ou seja, nem todos os agentes económicos detêm as mesmas informações. A diferença entre as informações em posse de cada agente económico permite que o resultado da interacção das decisões individuais no mercado não seja o equilíbrio.
 A realidade que mais se enquadraria no modelo dos novos clássicos de expectativas racionais seria a dos mercados financeiros. As transacções com acções, títulos e toda miríade de papéis são profundamente afectadas pelas informações correntes, ou melhor respondem imediatamente às novas informações. As avaliações não são tomadas lentamente tentando cruzar as novas informações com as experiências passadas, as respostas às novas informações são imediatas. O que se reflecte no movimento frenético dos mercados financeiros no mundo inteiro. As expectativas estão sempre a ser reavaliadas e influindo sobre o mercado. A situação agrava-se porque, como postulado pelos novos keynesianos, há assimetria de informação inclusive nos mercados financeiros.
Além da informação assimétrica, os mercados convivem também com a incerteza fenómeno enfatizado pelos autores pós-keynesianos. A combinação de informação assimétrica com elevação da incerteza aumenta a instabilidade. É o cenário que o mundo vive hoje e que está a tornar cada vez mais difícil a efectividade da política económica governamental.
Temos assistido recentemente por parte dos países europeus a intenção e a formalização de um pacote de socorro à economia europeia (fundo de estabilidade europeu), este só irá originar um alívio momentâneo ao que se seguirá uma retoma da crise. O processo tem sido este pelo menos desde que se manifestaram este tipo de intenções. E a situação não se restringe só aos Estados Europeus.
Já que os montantes mobilizados pelos governos para este tipo de fundos se distanciam muito do volume que é movimentado no sistema financeiro, o primeiro objectivo da comissão europeia será de mostrar que está pronto para socorrer o sistema, é o de transmitir segurança e reverter as expectativas para que a crise não seja aprofundada por processo cumulativo, onde o crédito se restrinja cada vez mais e as dificuldades financeiras e que estas sejam transferidas para a economia real. Como já sabemos os governos europeus não foram capazes de impedir este ciclo, os indicadores hoje apontam para a recessão e a deflação.
Independente dos méritos da leitura dos novos clássicos sobre a economia em termos gerais, a questão fundamental para ineficácia da política económica hoje na contenção da crise está no volume de informações difundidas diariamente que entram no cálculo das decisões dos mercados financeiros. E no contexto de ampliação da incerteza perde qualquer parâmetro para definição de um portfólio consistente de investimentos, o resultado é que os investidores são propensos a fazer reajustes em função de qualquer nova informação. E neste contexto de incerteza generalizada torna-se muito difícil, muito caro e muito arriscado diferir as informações relevantes que influem sobre a rentabilidade do portfólio das informações que podem ser descartadas. Sem critérios para escolher entre os diferentes investimentos e sem qualquer perspectiva de longo prazo, os investidores tendem a adoptar de forma ainda mais pronunciada o comportamento de procura. O resultado é que a incerteza é realimentada, a instabilidade é realimentada, e as mudanças de portfólio geram novas informações que irão repercutir novamente na definição dos portefólios dos investidores.
Ora, a tão propagada globalização das comunicações, as notícias on-line actualizadas minuto-a-minuto tendem a aprofundar o clima de incerteza, e dificultam o discernimento da importância das informações. Por exemplo, em qualquer momento entra-se num portal informativo onde seremos confrontados com novas informações sobre a crise, sobre o que se passa na China, o que passa no Japão, nos EUA ou na Europa. Esta conexão permanente permite que bancos, fundos, investidores de um modo geral estejam 24 horas em contínuo recebimento de informações sem que haja prazo para as analisar e avaliar os resultados das estratégias adoptadas interiormente. Neste emaranhado de informações, as informações sobre os pacotes governamentais são apenas mais uma informação, perdem rapidamente a prioridade para os novos dados que vão surgindo e que também modificam o comportamento dos agentes económicos. Ou seja, a política económica no curto prazo tende a ter os seus efeitos sobre as expectativas anulados pelo menos quando se espera que esta seja capaz de estabilizar os mercados financeiros.
Neste aspecto, os críticos dos programas de ajuda aos bancos têm alguma razão. Se o objectivo do governo é impedir a recessão e a deflação, uma acção sobre a economia real dando suporte à indústria e aos consumidores tende a ser muito mais eficaz, porque as decisões sobre investimento e sobre consumo são tomadas considerando um prazo mais longo do que as decisões tomadas nos mercados financeiros.
Nuno Serra Pereira
Lisboa, 16 de Dezembro de 2011.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

O Fado. O Nosso Fado. O Fado de Todos.

O Fado classificado recentemente pela UNESCO como património imaterial da Humanidade é daqueles acontecimentos que nos deve encher de orgulho e satisfação por vários motivos, sendo certo que a manutenção do título também deverá ser acautelada.
Um dos aspectos mais gratificantes é que o reconhecimento de uma organização internacional como a UNESCO traduz a expansão e o apreço à escala universal que o Fado alcançou. Pessoas de diversas nacionalidades, muitas vezes não compreendendo a língua portuguesa, sentem e vivem o espírito, ou a alma se preferirem, do Fado. Sentem o Fado e algumas são já intérpretes do Fado. Dá uma forte componente de cosmopolitismo, de valor à diversidade cultural e em simultâneo de reforço da identidade e da tradição portuguesas. E se o galardão em si mesmo poderá não causar crescimento e potenciar o Fado, uma utilização inteligente e estruturada dessa nova categoria poderá dar os seus frutos.
Ao ser integrado numa estratégia nacional de articulação próxima e profícua entre o sector cultural e o sector económico/turístico, como de resto o governo tem na calha, o Fado pode ser uma forte componente da dita marca Portugal. As vantagens são inúmeras e de peso. Ao ser feito este trabalho de valorização e promoção, com suporte também neste reconhecimento internacional, para além de se estar a divulgar e disseminar a cultura portuguesa através da língua, da música, dos nossos poetas, músicos e intérpretes está a reforçar-se a vertente económica e social desta tão importante actividade cultural.
Ao conseguirmos reconhecer o Fado como uma expressão artística, de comunicação, de sentir humano, quase como uma ("estranha") forma de vida que extravasa o campo das artes e da estética musical em concreto, em paralelo com o facto de ser também (reforço o também) um produto turístico que deve contribuir para o nosso desenvolvimento sócio-económico estamos a enriquecer o Fado e a nós próprios. Em nada o ou nos diminui tal consideração. Muito pelo contrário pelo que precisamente acabei de expressar.
Utilizar a poesia, o canto da mesma, a música, as sonoridades das guitarras clássica e portuguesa, a arte do espectáculo como ondas de força neste oceano de dificuldades mas também de oportunidades que devemos aproveitar. É a forma mais bela, sem dúvida, mas também porventura a mais eficiente e eficaz de dinamizar este país e todos os que nele habitam ou que a esta Pátria pertencem.